Antagonia

Um rosto, uma síntese, um disfarce, um flerte, um porto seguro em um mar desconhecido… Se um título pode ter várias funções, o que dizer de Antagonia?

Não ajuda saber que tal palavra pertenceria a um esotérico dialeto. Ignoro quantos o falariam. Será possível encontrar pistas de seu significado ao analisarmos outros aspectos desta obra?

Longe de ser um item obrigatório, há títulos para todos os poemas aqui contidos. São títulos firmes; dão a impressão imediata de que vão conduzir o fio de sentido do que virá a seguir. Mas esta segurança logo se mostra ilusória, pois os percursos e vieses a que somos conduzidos tomam direções insuspeitas. A tal ponto que cada poema termina por constituir um título antes e um depois da sua leitura, embora fiquem no mesmo lugar, escorados nas mesmas letras.

O fato de “Antagonia” também encabeçar um dos poemas é menos significativo do que constatar que este título só emergiu para toda a obra tardiamente. Segundo soube, originalmente ela se chamaria “Eu?”. Talvez até ainda se chame e seja só uma questão de tradução. Não é certeza, mas faz sentido. Afinal, este é o tema mais recorrente em todo o conjunto dos versos.

Eu? Há aqui diferentes prolongamentos desta questão fundamental.

Um deles é o que surge como retrato poético de seu autor; uma imagem nítida e de emocional franqueza. Uma imagem também de intensa ambivalência: o vai-e-vem assumido entre a convicção e a insegurança, a paixão e o tédio, a solidão e a cumplicidade, a castidade e a putaria, a violência e a sensibilidade artística; rudes provocações e mui delicadas reverências; surpreende o modo como um indignado rancor se alterna com transbordante amor.

Seus hábitos também nos passam a ser conhecidos: o que costuma fazer quando acorda bem disposto; suas furtivas incursões à não tão distante Tabacaria, local onde reencontra frequentadores saudosos e que se sente mais perto de Deus. Sabemos do seu costume de conversar e buscar conselhos com Lourenço, João, Einstein e Francisco. De se entender com Drummond brincando com as pedras; de se tornar pedra.

Nem se cogita que todos eles estariam mortos (Como poderiam, diante de tanta presença? São espíritos de carne e osso). Não obstante, somos apresentados às pessoas que lhe são próximas, cotidianamente vivas, mas que aqui se as presta a elas homenagem com o brilho da perenidade.

Sobre Tânia, o testemunho de estar casado com sua própria musa; Denise nos é apresentada como genuína figura arquetípica de criança, uma filha de todos nós. Só existem uma Clara, um Salinas, uma Thaíse, e um Rocha em todo o mundo, grandes amigos de grandes diálogos. Há Fulanos e Sicranos que, além de sinalizar o pudor de uma não exposição, sintetizariam seu desejo de incluir aqui até ilustres desconhecidos.

Recebemos um voto de confiança quando discretamente nos são contados certos segredos constrangedores de outros conhecidos seus. Do querido Fernando, após muitas suspeitas, finalmente a confirmação de que ele
nunca foi uma pessoa. As lembranças infantis de muitos serão profundamente perturbadas quando, por exemplo, vier à tona através de fina ironia (e sem citar nomes) que a proximidade entre Saint-Exupéry e Maquiavel não estaria só nos títulos de suas obras maiores. Quem imaginaria a inocência sendo usada intencionalmente como tamanha forma de manipulação?

É curioso como a denúncia da métrica como forma de tortura dos poemas não o impede de usar letras e parênteses algebricamente, em engenhoso cálculo simbólico, para subverter palavras em busca de suas verdades cabalísticas.

Quanto a isso, parece haver a intuição de uma lógica poética; de que pode existir muita proximidade e sobreposição entre metáforas e analogias e, como tal, de que seus limites estariam a um passo da antinomia. Voltemos
àquela questão: – “Eu?” – Como é curiosa uma indagação em que a resposta deslizante anula a própria pergunta: – “Sim, você.” (e não eu); – “Eu.” (mas não o mesmo eu). Será que a única saída é concluir com Rimbaud: “eu é um outro”?

Em Antagonia se pressente uma outra forma de pôr os termos em jogo.

Uma forma sensível, humana, altruísta; ampliada ao outro, ao mundo. O “eu” se torna plural; o “nós” que desata por completo tal paradoxo. E que inicia um desafio.

Se uma poesia mostra o seu valor estético em função do quanto transformaria velhas palavras em novas imagens (mantendo-se como palavra, deixando o leitor sem palavras), há, entretanto, um outro aspecto que com frequência é negligenciado ao valor poético: a interlocução.

Ninguém nunca conseguiu escrever para si mesmo, e até o mais íntimo e secreto dos diários aguarda o momento em que um leitor hipotético (misterioso, invasivo, interessado) o descobrirá, justificando assim a sua escrita. Cada sílaba é sempre um vocativo; cada frase, um apelo. Da mesma forma, não há poesia sem um outro que a ressoe. Como já disse Coleridge: “Sentimos que alguém é poeta na medida em que esse alguém nos transformou por algum tempo em seres criativos em atividade”.

Sendo assim, assumo agora efetivamente a palavra para que este momento possa se configurar também como reflexão sobre o contorno desta obra; sobre as coisas que estão envolvidas aqui, transbordando das entrelinhas de cada página.

Considero que na poesia, mais do que em qualquer outra arte, a ética deve suplantar a estética. Ética em um sentido pleno: o de criar um embate entre um eu e um outro na busca por entendimento, às vezes bem distante.

Tal empreitada se assenta na sinceridade do autor. Se assim não o for, não há poesia, só performance. Milton Filho não é um performático.

Eu o conheci enquanto seu professor no curso de Psicologia e dentre as tantas interações em sala e nos corredores, lembro-me que, por várias vezes, encontrava escrito com angulosas letras um poema no quadro branco.

Enquanto eu lia, ouvia a voz no fundo da sala, a voz do autor: “pode apagar, se quiser”.

Teria passado despercebido por mim o fato de eu nunca os ter apagado se Milton não tivesse me sinalizado posteriormente. Mas se nunca o fiz, mais além do que a admiração estética, foi por simples respeito e por uma involuntária impressão de achar tal manifesto completamente condizente com o contexto; que a psicologia é, também, uma forma de poética.

Milton percebeu isso e hoje sei, assim como saberão os seus leitores, que ele compartilha da mesma opinião. Ele considera esta postura algo raro; eu ainda prefiro pensar que não é tão raro assim.

Quando posteriormente Milton chegou até mim de forma tímida, quase constrangida, mas confiante na qualidade de seu trabalho, sugerindo que eu lesse e prefaciasse os seus escritos, aceitei honrado e entendi que este pedido era uma forma de reconhecimento e de cumplicidade. Seu convite não visava uma merecida exaltação da obra, visava uma participação.

Milton chegou a me mostrar especificamente algumas passagens do texto que ele considerava como mais emblemáticas. Seu entusiasmo parecia indicar que sua própria obra ainda o surpreendia. Queria dividir comigo a mesma sensação de se orgulhar de algo que maravilhosamente fugiu de seu controle. Milton tenta o tempo todo ter o controle das imagens e dos efeitos de sua poesia, mas com frequência elas escapam por linhas de fuga, tornando-se ainda maiores do que deveriam ser. Nestes momentos, é ele quem mais vibra, parecendo, em inusitada inversão, que autor e poesia mudam de lugar.

Quantas vezes cada um de nós não quis dividir com outra pessoa alguma experiência intimamente intensa, que parece tocar além do mistério do mundo, mesma forma? Como em certos sonhos que insuspeitadamente nos marcam com uma experiência inefável até que acordamos e corremos para contar a alguém, mesmo na agonia de saber que todo o brilho vivido vai bruxuleando e se apagando sem que consigamos transmitir verdadeiramente ao outro?

Penso que a boa poesia seja o persistir na busca destes sentidos bem particulares, imanentes, singulares – uma experiência de solidão absoluta – e não esmorecer em expressá-los em palavras para que transcenda universalmente até o âmago do outro – uma vivência de intimidade profunda. Como tal intimidade é sempre incompleta, toda grande poesia está sempre em constante movimento. Ocorreu-me agora que “Antagonia” é um
verbo. Vejamos juntos suas múltiplas conjugações.

Guilherme do Nascimento Caldeira
Aracaju, 01 de agosto de 2012.

Guilherme do Nascimento Caldeira é psicólogo, mestre em
Ciências Sociais e professor universitário há mais de uma década.

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