Concorrência das Tradições Jurídicas, A

Existe, no Canadá, uma geografia do bijuridismo (e, de modo mais amplo, das relações entre o Direito Civil e a common law) que, longe de ser apenas física, talvez seja antes de tudo cultural. De fato, quando encarado como fato de cultura e não simplesmente como fato de direito, o bijuridismo se choca, fora de Quebec, contra obstáculos que parecem difíceis de ser superados e que contribuem para a perpetuação e o reforço das “solidões do bijuridismo canadense”. Esses obstáculos, estejam eles ligados à língua, à socialização dos juristas, à ideologia ou à configuração das relações de forças entre as tradições jurídicas, asseguram a cristalização e a essencialização de identidades jurídicas cuja elaboração, de resto, participa de projetos nacionalistas de maior tamanho. Nesse sentido, a dinâmica de interação entre as tradições jurídicas no Canadá revela a resiliência dos atavismos aos quais é suscetível de dar vida à identificação com uma tradição jurídica particular. Ora, no momento em que projetos de integração e de harmonização do direito se elaboram em diversas regiões no mundo, por exemplo, na Europa e na África, e na medida em que muitos desses projetos parecem pressupor a possibilidade de emergência de uma cultura jurídica comum para além das identidades locais e das tradições jurídicas que as alimentam, a resiliência desses atavismos numa ordem jurídica como o Canadá sem dúvida alguma leva a refletir.

APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO:

Caro(a) Leitor(a),

A Coleção Culturas Jurídicas é a primeira coleção brasileira que tem como objetivo discutir o direito dentro de uma perspectiva de abertura à alteridade, fazendo-nos ter consciência de que a nossa maneira de pensar os nossos direitos está ligada à nossa maneira de pensar o mundo. Trata-se de um projeto inovador que nos convida a conhecer o fenômeno jurídico como uma dimensão da vida inserido na dinâmica global.

A hipótese básica que motivou a publicação da Coleção Culturas Jurídicas é a de que as limitações pragmáticas do direito contemporâneo decorrem de um excesso de preocupação com a regulação da sociedade sem que haja uma compreensão cultural da vida social. Esta hipótese é mais evidente no plano internacional. A percepção que nós temos do fenômeno jurídico pode não coincidir com aquela do chinês, do afegão ou do russo, por exemplo. Este fato desafia o projeto de internacionalização do direito e produz conseqüências no âmbito da cultura jurídica de cada Estado.

Por outro lado, o direito é apresentado como um fenômeno que ultrapassa a percepção unicamente positivista do ordenamento jurídico estatal. Novos laços de identificação social põem em questão a identidade nacional de um direito. Fragmenta-se o fenômeno jurídico em novas formas de regulação social que impulsionam o surgimento de um cenário marcado pela pluralidade de direitos não necessariamente produzidos pelo Estado.

O direito estatal sofre, assim, a concorrência de outras formas de regulação normativa da atividade humana. A lex mercatoria é um exemplo no plano das relações comerciais internacionais privadas. Mas não é o único. Admite-se a existência de ordens jurídicas distintas, tais como o direito comunitário, o soft law, os direitos indígenas, o direito da internet etc., que, por sua própria dinâmica, tornam-se insuscetíveis de serem apreendidas por uma única forma de pensar o direito.

Estes fatos repercutem no nosso modo de pensar, aplicar e ensinar o direito. É para este cenário, complexo e fascinante, que o novo jurista deve se preparar. O profissional do futuro deve ampliar seus horizontes, abrir-se cognitivamente para o conhecimento de outras culturas jurídicas no mundo, dominar diversos idiomas, preocupar-se não só com as possibilidades de eficácia do direito mas, sobretudo, com a sua legitimidade. E isto implica saber operar em um ambiente social e global marcado pela diversidade.

É por esta razão que três eixos de reflexão inspiram a Coleção Culturas Jurídicas. São eles: o direito comparado, o multiculturalismo no direito e o pluralismo jurídico. Combinados, estes eixos contribuem para a compreensão do mundo jurídico como uma rede de relações entre vários direitos e várias culturas. A Coleção Culturas Jurídicas inaugura um espaço de veiculação de novas visões de mundo a respeito deste fenômeno social chamado “direito”. Convidamos todos, portanto, a se aventurar na descoberta de um direito plural e multicultural, sem o qual será particularmente difícil lançar um olhar novo sobre o mundo, sobre nossas sociedades e sobre nós mesmos.

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