Contra o Absoluto

Há muito tempo a sombra dos clássicos caiu sobre Hans Kelsen. Isso quer dizer que suas obras já não são lidas, pois se transformaram em alvos de infindáveis controvérsias patrocinadas ora por críticos desonestos e ora por servis reprodutores de suas ideias. Todavia, nenhum desses dois grupos é capaz de trazer à luz a verdadeira face de Kelsen, que não é aquela da Teoria Pura do Direito, sua criação intelectual mais conhecida e hoje injustamente atacada. O que os inimigos e os bajuladores de Kelsen não podem suportar é o fato de que, além de ter sido um grande jurista – responsável pela criação de uma verdadeira ciência jurídica, passo que, com todos seus percalços, pôde garantir a passagem do Direito de um âmbito que chamaríamos de “alquímico” para outro de inspiração “química” – e um competente profissional do direito – Kelsen criou o sistema de controle concentrado de constitucionalidade, tendo atuado como juiz constitucional na Áustria por quase uma década -, Kelsen foi também um dos maiores filósofos do direito do século XX, como esta coletânea pretende demonstrar. Há um projeto consciente de negação do título de jusfilósofo a Kelsen. De fato, seria escandaloso contar um relativista nato entre os cultores dessa disciplina sempre comprometida com o absoluto. Mas a verdade não pode ser negada. Kelsen é sim um filósofo, e mais, um que se inscreve na rica tradição de pensadores realistas como Maquiavel, Hobbes, Freud e Luhmann, autores que tentaram nos fazer ver o que é o mundo e o homem para além dos símbolos que lhes dão significado. Contudo, o pessimismo antropológico de Kelsen jamais se converte em inação. Armado com a firme crença na relatividade de todas as coisas – até mesmo na relatividade desta afirmação -, Kelsen constrói com sua obra uma profunda, original e imprescindível defesa da democracia, entendida como arquitetura em movimento cujos vértices são a diferença e o dissenso, antecipando assim temas e problemas próprios de um mundo fraturado e policêntrico como o nosso. Na sua Política (1261a) Aristóteles já notara a tendência totalizante presente em certos filósofos que, tal como Platão – e, acrescentaríamos nós, Hegel e Schmitt -, tratam a pólis como oikía, ou seja, tentam centralizar a vivência pública nas decisões unipessoais de um despótes ou dominus, anulando dessa maneira a possibilidade de o démos se estruturar na arena dos debates. Pensadores assim objetivam antepor à política uma mera economia (oikonomía) dos corpos e afazeres humanos. Na contramão dessa corrente, Kelsen aposta no espaço do discurso legitimamente político. A democracia se converte então em perene obra crítica cuja função é não permitir que sejamos subjugados pelos absolutos que nos ameaçam dia-a-dia, sejam chamados de Deus, Estado, Direito Natural, Mercado ou qualquer outra palavra com inicial maiúscula.
Andityas Soares de Moura Costa Matos

Quem quer que se debruce sobre o pensamento jurídico contemporâneo, com suas múltiplas escolas e correntes, poderá concluir, sem medo de erro, que Kelsen é o pensador central da Filosofia do Direito de nossa época. A favor de Kelsen ou contra Kelsen, ele foi o marco divisório de uma quantidade significativa de juristas que tiverem de iniciar suas trajetórias posicionando-se com relação às ideias do mestre de Viena. Poucos autores tiverem a influência global de Kelsen, traduzido do Japão ao Brasil, em uma quantidade enorme de idiomas, atestando a possibilidade de um projeto de Teoria Geral do Direito. Que sua obra ocupe tal centralidade nem sempre lhe foi favorável. No centro de grandes polêmicas, Kelsen foi mais hostilizado ou reverenciado do que compreendido. A presente coletânea, que enfoca as diferentes dimensões do combate kelseniano contra os absolutismos filosóficos, jurídicos e políticos de sua época, demonstra a vitalidade de uma obra que não se esquivou diante dos grandes dramas humanos do terrível século XX. Revisitando tais dimensões, constatamos que, afinal, o mestre do relativismo nunca se furtou de nos oferecer, corajosamente, a sua verdade, mesmo sabendo do caráter relativo, contingente e provisório de todas as verdades. Há um movimento internacional de retomada do pensar kelseniano cujo marco é a progressiva publicação de suas obras completas na Alemanha, projeto atualmente em curso sob os auspícios do Instituto Hans Kelsen de Viena. A presente coletânea vem se somar a esses esforços, pretendendo contribuir para a discussão profunda e transdisciplinar da obra kelseniana. Para tanto, são apresentados pela primeira vez em língua portuguesa dois trabalhos de Kelsen de capital relevância para a construção do seu pensamento – Deus e Estado e A Alma e o Direito -, além de quinze artigos de especialistas da Áustria, Brasil, Espanha, Estados Unidos da América, Itália e México que procuram restituir à tradição kelseniana toda a dignidade política e filosófica que merece aquele que é considerado, com toda justiça, o mais importante jurista do século XX.

Arnaldo Bastos Santos Neto

admin

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Proin eleifend velit quis turpis ultrices, quis mollis nulla sollicitudin. Sed ac est a nibh lacinia condimentum. Sed volutpat semper libero at lacinia.ullamcorper. Pellentesque venenatis ac metus ut posuere. Praesent a accumsan velit. Maecenas venenatis lacinia finibus. Aenean rhoncus sit amet lacus vitae elementum. Integer enim augue, blandit iaculis sollicitudin sit amet, rhoncus sed enim. In feugiat, mauris eu mollis malesuada, lectus nisl ornare arcu, vitae aliquet quam magna id sem.

Disqus Comments Loading...
Share
Published by
admin

Abuso de Direito Processual

A presente obra sobre Abuso de Direito Processual, resultado de aprofundada pesquisa no campo doutrinário…

5 anos ago

Código de Trânsito Brasileiro – Com Comentários Especiais para Concursos

O autor, com larga experiência nas áreas da docência, palestras, gestão e operações de trânsito,…

5 anos ago

Previdência do Trabalhador Rural

A presente obra analisa, esmiuçadamente, a previdência social do trabalhador rural. Consiste em diagnóstico completo,…

5 anos ago

Defensoria Pública

A proteção dos direitos humanos no Brasil supõe a existência de uma instituição específica à…

7 anos ago

Defensoria Pública

Eis mais um ótimo trabalho editorial da Juruá Editora. O presente trabalho é referencial para…

7 anos ago

Declínio da Interpretação, O – Experiência e Intervenção em Psicanálise

O pensamento psicanalítico nutre-se originalmente da vertente platônico-kantiano-schopenhaueriana e Freud disso não faz segredo, a…

7 anos ago