O pensamento psicanalítico nutre-se originalmente da vertente platônico-kantiano-schopenhaueriana e Freud disso não faz segredo, a despeito das pretensões cientificistas que o acompanharam durante muito tempo. O fenômeno Nietzsche teve, porém, sobre ele um efeito perturbador. Era o Isso gritando alto e insurgindo-se furiosa e sardonicamente contra o método, a história, o humanismo e a razão. Freud sentiu-se de tal forma fascinado e ameaçado por Friedrich Nietzsche que esforçou-se para resistir à tentação de lê-lo. Percebia que ele e Nietzsche afundavam suas mãos no mesmo magma sulfurante e extraíam dali verdades inadmissíveis que engendravam um permanente estado de tempestade e tensão. Freud domesticava apolineamente o inconsciente e o Isso submetendo-os ao Eu, aos processos secundários, à lógica da interpretação e da razão. Contrariamente a isso, Nietzsche atiçava dionisiacamente as labaredas que subiam das profundezas dos abismos de fogo que seu pensamento explorava em obstinado frenesi. Freud instituiu a Deutung com um propósito de compreensão do fenômeno anímico e de objetivação das descrições; Nietzsche exercitou a Auslegung condenando todo saber humano a um perspectivismo insanavelmente refratário a qualquer esforço de generalização.
O pensamento psicanalítico do século XXI sofre uma marcante influência do pensamento de Nietzsche, por conta do diálogo permanente que mantém com os filósofos contemporâneos cujas obras foram concebidas sob o signo do irracionalismo, do ceticismo e do vitalismo nietzscheanos. Não há nenhuma impropriedade ou exagero em realçar as notáveis ressonâncias Nietzsche-Ferenczi, Heidegger-Lacan e Deleuze-Winnicott como se poderá, no curso deste livro, demonstrar. A perspectiva teórico-clínica cujo ocaso, esta obra propõe-se tematizar é justamente a que recomenda e avaliza a operação decifrativa, que, ao sustentar-se num pressuposto conteudista e numa suposta subsistência do significado, institui o psicanalista na condição de tradutor intérprete, de arqueólogo ou de exegeta e condena o analisando a uma insuperável atitude de servidão ao saber do Outro que se absolutiza em manobras de significação.